quinta-feira, 1 de julho de 2010

Luiz Carlos da Vila

Retemperar (Leandro Fregonesi / Luiz Carlos da Vila)



Duas postagens anteriores e duas citações a Luiz Carlos da Vila não são mera coincidência. É que ele foi mesmo muito importante na minha vida de compositor. E o pouco que pude conviver com ele me deixou lições bonitas.

Mas como pode ser importante um parceiro com o qual se fez apenas uma música?

É que ele era genial. E quando se tem a chance de compor com alguém genial, fica a sensação de sermos igualmente geniais por termos entrado no hall dos parceiros aceitos por esses geniais que admiramos.

Genialidade e generosidade. Palavras que até se parecem, talvez por terem convivido tanto tempo juntas dentro de um mesmo Luiz. O genial “Da Vila” foi generoso comigo, desde a primeira vez que nos encontramos no camarim do Teatro Rival, para participarmos do show do nosso parceiro comum Riko Dorilêo.

Lá, ele disse: “Ah, você que é o Fregonesi? Tem mais alguém com esse nome no samba? Já ouvi falar de você, mas achei que você fosse mais velho”.

E, na intenção de não importuná-lo demais com minha imensa admiração pelo seu talento e trabalho, respondi apenas: “Sim, sou eu. E sou muito seu fã. Gostaria de poder compor junto com você”.

Ele arrematou: “Claro, vamos trocar umas idéias. Mas não só de música. De vida também”.

Eis que eu chego em casa e não durmo enquanto não faço uma primeira daquelas classudas para mostrar a ele. Para que ele não recusasse a parceria.

Só dormi quando fechei esse começo de samba:

“Porque você agiu assim tão sem juízo
E, sem aviso, resolveu que nunca mais?
De madrugada fez as malas de improviso
Alegando que eu não valorizo o que você me faz
É seu direito ir atrás do paraíso
Eu fui narciso nas questões sentimentais
Meu bem, perdoa por tamanho prejuízo
Se é pra ter o teu sorriso
Eu me sensibilizo e volto atrás”

Liguei pro “Da Vila” e marcamos que eu deixaria uma fitinha k-7 pra ele no estúdio da editora EMI, onde ele teria reunião naquele dia e onde faríamos fotos para um show em que ele seria meu convidado, no Sacrilégio, Lapa.


No detalhe, com a letra e a fita k-7

Entre uma foto e outra, sobrou um tempinho e havia um violão no canto do estúdio. Ele disse: “Eu vou ouvir a fita quando chegar em casa, mas toca no violão o que você fez pra eu conhecer”. E lá fui eu mostrar pro meu ídolo o que eu tinha feito.

Ré menor. Alegria e apreensão fizeram com que eu tocasse cadenciando o samba.

Cantei duas vezes, reforçando alguns trechos na minha interpretação para que ele captasse a intenção da música.

E veio a resposta que pareceu um sonho: “Deixa a segunda pra mim!”

Não sabia como retribuir. Não sei até hoje.

Poucos dias depois, ele trouxe a segunda inteira pronta, modulando para ré maior, com sua musicalidade inconfundível:

“Retemperar o velho amor
Cuidar do tato e do sabor
O tempo é o maior professor da existência
Intransigência não faz ninguém mais feliz
O mal que eu fiz o teu perdão poderia perdoar
Livrar-nos de qualquer resquício da pendenga
Acabar com a lenga-lenga
Sem ouvir o leva-e-traz
São naturais entre os casais coisas assim
Abafa o caso e o estopim
E vamos viver em paz”
.

Eu estava gravando o disco “Festa das Manhãs” e mostrei pro maestro Ivan Paulo, diretor musical. Resposta do maestro: “Que samba bom! Vamos gravar, certo?”

“Gostou mesmo, Ivan? Porque eu adorei!”

Arranjo a cargo de Mauro Diniz.

E tive o segundo ato de ousadia: convidei o “Da Vila” pra cantar em dueto comigo. Ele aceitou, reforçando: “Olha, você sabe que eu não sou cantor, né? Mas como a música é nossa, eu aceito participar”.

E depois ele fez comigo o lançamento do disco tanto no Rio quanto em São Paulo, cantando juntos a nossa nova “Retemperar” e muitos dos seus sucessos.

Em Sampa, feliz por se julgar plenamente recuperado do "probleminha" de saúde pelo qual passou, ele me fez um dos maiores elogios que já recebi na minha carreira. E o fez sem perceber, como devem ser os atos de grande generosidade. No meio do papo, ele soltou : “Fregonesi, acho que pela primeira vez eu não mudei nem uma vírgula de um samba que me foi dado para terminar”.

Generosidade se paga com generosidade. E a última coisa que consegui falar para o genial e saudoso Luiz Carlos da Vila, no intervalo de um dos seus shows, no Carioca da Gema, foi: “Da Vila, eu adoro te ouvir cantando. Sua voz é o melhor trompete do samba”.

Ele riu e deu um gole no uísque.

2 comentários:

  1. eita! Que história linda. Nem vou aqui "cantar" a musica, do meu jeito, com todos meus abusos, pra não estragar o contexto. hehehe
    Musica linda e mais lindo ainda todo este carinho trocado por vcs, desde sempre.

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  2. Carinho é algo que se troca por afinidade. Então, pelo carinho e pela gratidão que sinto, ainda hoje, pelo "Da Vila", só posso crer que ele, de onde estiver, sente a mesma coisa e, por vezes, até acho que me orienta na lida tão dura (a partir da pág. 3) de uma carreira musical.

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