sexta-feira, 16 de julho de 2010

Ésse, ó, éle, i, dê, a, til, ó


"Flor Sem Xaxim", com Leandro Fregonesi e Áurea Martins

Ainda não conheci nada mais dilacerante que a solidão. Não a solidão por opção, tipo querer ficar sozinho, desligar o celular, não abrir a internet, não responder aos amigos em certos dias de pouca animação e de recusar convites, alegando que “é uma fase em que prefiro ficar sozinho” ou “fechado para balanço”.

Falo da solidão de não ser procurado. De parecer ter sido esquecido por todo mundo, sem exceção.

De ter certeza que ninguém vai fazer contato, por mais que se queira. E é tudo o que se quer.

De estar, ao mesmo tempo, longe de casa, da família, de todos os amigos, da cidade em que se nasceu e viveu a vida inteira. E longe da fé.

Lon______________________________________________ge.

A solidão inevitável dos primeiros dias de quem busca construir uma vida nova em outra cidade, por exemplo.

Aquela solidão que é vizinha da depressão no andar de baixo, da fraqueza no andar de cima, da insegurança na parede direita, do cansaço na parede esquerda, das dúvidas na janela dos fundos. E da tristeza, vizinha da porta da frente, que muitas vezes vem pedir algum ingrediente para o seu bololô.

Uma solidão que não esbarra na rua com a esperança.

Pendure no cenário dessa solidão: o pai que há anos sequer telefona, com outra família já constituída como prioridade absoluta e a mãe de difíceis negociações emocionais, garantia de brigas intermináveis que, quando faz contato, estraga o dia.

Jogue o foco da luz para o fato mais relevante de todos: a morte do único irmão que se tinha. Morreu com 32 anos, vítima de câncer - "essa doença filha da puta!" - que o liquidou em 2 meses de angústia e sofrimento.

Deu pra entender, né?

Ésse, ó, éle, i, dê, a, til, ó = SOLIDÃO.

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Como dizem as pessoas que querem falar de sexo sem se expor: “Essa história não é da minha vida, mas é da vida de uma pessoa que conheço”.

Mas é verdade. Tudo isso aconteceu.

Bem na minha frente.

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E foi inspirado por esse contexto que eu escrevi, numa madrugada de profundo silêncio, esta canção:

FLOR SEM XAXIM
(Leandro Fregonesi)

Duas voltas na chave da porta
Ninguém vai chegar
E aqui dentro não tem lua cheia
Nem vento que sopra
Nem brisa de mar

Nas paredes, nos cantos da casa
A voz me embaraça de tanto ecoar
E eu vivo aqui
Quase morto

A cidade não olha por mim
E eu não faço questão de você perceber
Ninguém vê que eu invento alegria
Que eu minto euforia pra sobreviver

No espelho a imagem que eu vejo
Me traz mais desejo de ver mais você
Perto de mim
Aconchego...

E o que falta pro meu coração
É saltar esse vão que me afasta de mim
Eu preciso me reconhecer
Pra que eu possa fazer companhia pra mim

Mas me sinto de asa quebrada
Com rodas quadradas
Quintal sem jardim
Flor sem xaxim
Fé sem crença
Solidão é a doença
Que quer me matar

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Eu a gravei, no meu disco “Festa das Manhãs”, que foi dirigido pelo Ivan Paulo.

A música ganhou o arranjo de Rildo Hora.

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Curiosidade 1:

Dias antes da gravação o Rildo me ligou para perguntar se o tom poderia mudar para ré maior, pois eu havia pedido que o arranjo fosse em mi maior para o disco: "Leandrinho, é o Rildo! Se essa música mudar para ré maior, dá para fazer uma coisa mais interessante no arranjo, usando as cordas soltas, como baixo, nos acordes do violão".

Eu: "Claro, Rildo! Que bom que você ligou, porque eu compus a música originalmente em ré maior mesmo e estava nessa dúvida entre o ré e o mi".

Rildo: "Então vou manter o arranjo que eu já fiz aqui em ré, ok?"

E, para minha surpresa, ele arrematou: "Olha, tanto essa música quanto aquela outra lá (Futuro do Pretérito, meu bolero de 8 minutos, que também ganhou arranjo dele) são muito boas. A gente quase não vê mais música desse tipo por aí. E as pessoas não me chamam para fazer arranjos desse tipo, porque acham que eu só faço samba, sabe? Mas na verdade eu gosto também de atacar nessa área das canções mais calmas. Gostei muito mesmo. Você um dia será meu parceiro, porque faz músicas muito boas".

E, não cabendo em mim, retruquei: "Puxa, Rildo, muito obrigado. Que bom que você gostou. Vindo de você, eu vou até acreditar que as músicas são realmente boas".

Curiosidade 2:

No meu aniversário do ano seguinte, ele publicou no site da Agenda Samba e Choro o seguinte texto, na íntegra:

"Leandro Fregonesi é um rapaz culto, inteligente e talentoso. Trabalhei com ele no seu disco Festa das Manhãs, produzido pelo amigo-maestro Ivan Paulo. Gostei do trabalho e agora, com alegria, vejo que está fazendo o certo, ganhar a estrada. É nela que se aprende com os que por lá já passaram, o roteiro do infinito Caminho das Pedras.

Dizem que o Caminho das Pedras foi descoberto por meninos que queriam saber do mundo e suas nuances. Guiados pela esperança pegaram a estrada levando a sina, alguns que não gostam de caminhar, foram ficando. Os mais persistentes, que chegaram ao final, descobriram num livro de consultas a palavra experiência, e muitas coisas. Ao entenderem seu significado, continuaram consultando, vivenciaram alegrias e tristezas, redescobriram suas vontades.

Há quem diga que o Caminho das Pedras vai dar na Terra dos Sonhos, onde moram artistas e pensadores.

Leandro Fregonesi, futuro parceiro musical, pretende chegar lá com seus poemas e esperanças. Conseguirá."

Rildo Hora
Março de 2006



No estúdio, com os maestros Rildo Hora e Ivan Paulo.

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Convidei para cantar "Flor Sem Xaxim" comigo no CD ninguém menos que:

ÁUREA MARTINS!

Áurea nos fez chorar a todos no estúdio quando interpretou, à sua linda maneira, a minha música mais triste de todas que já foram gravadas até hoje.

Palavras do Ivan Paulo: "A Áurea parece que canta com lágrimas na voz".

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Curiosidade 3:

Dizem que a Elizeth Cardoso, de quem Áurea é contemporânea, falava:

"Agora que acabou meu show, quero ir ver a Áurea cantar".

11 comentários:

  1. Cada vez que escuto (nesse caso, leio) essa histório eu me emociono... vc soube expressar em palavras e música (e emoção quando canta) um sentimento que só dá pra sentir...e poucos entendem...
    Beijos

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  2. Obrigado pela visita Carol e Rosane!

    E agora o blog está de cara nova...

    Notaram? hehehe...

    Até a próxima postagem.

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  3. Eu percebi, está mais bonito mesmo!
    E querido, essa música é realmente linda de chorar, principalmente pra quem sabe como é estar lon____________________________ge...
    Bjo grande!

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  4. Le, como essa é minha primeira visita, quero dizer uma coisa antes de qquer outra: parabéns pela iniciativa de fazer o blog. Uma pessoa que tão bem se expressa com as palavras deve expor seu talento, dividir isso com nós, meros mortais. É uma maravilha poder lê-lo aqui.

    Bom, por motivos obvios não tenho muito o que dizer além de OBRIGADA. Obrigada por conseguir colocar em palavras, dar nome a, aquilo que parecia ser inominável. Obrigada por me ajudar a traduzir a tal solidão e, mais importante, me mostrar o quanto é possivel viver sem o peso, sem a sombra de sua dificil presença. Obrigada por ter sido o ombro, a mão que apoia, o colo que acalenta, as pernas que direcionam... em momento tão dificil.
    Que o mundo sempre te trate com o carinho e o respeito que vc tanto merece.
    Obrigada pela canção e obrigada pela parceria na vida.
    Te amo, meu amigo.
    Bjo imenso, Ana

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  5. É Leandro, essa música, pra mim, já era linda, depois de ler o que li aqui, ficou mais linda ainda. Lembra qdo fomos à sua casa, Renata, Iris e eu, ouvimos suas músicas e vc nos pediu para dar notas (não me lembro bem o sistema que vc adotou), pq estava escolhendo a música de trabalho do seu disco "Festa das Manhãs".
    Pois essa foi a que escolhi. Ela é realmente mto triste, dói o coração, mas é de uma beleza indiscutível...
    Parabéns pelo blog e por sua genialidade tão natural.
    Bjos, Marta

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  6. Eita, que monte de carinho bom!

    Obrigado a vocês, sempre.

    bjs

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  7. Rapái, ficou show o novo layout!!

    Muito boas histórias para acompanhar as ótimas músicas. Essa é de arrepiar.

    Abs!!

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  8. Meu querido Léca, lendo seus textos me vi numa mesa de boteco onde, entre um copo e outro de cerveja, o poeta narra, para o ouvinte emocionado, a história que deu alma à poesia. Felizmente já tive algumas oportunidades de poder vivenciar essa emoção com Vc. Que Deus continue abençoando seu talento, pra gente poder continuar se emocionando com suas criações.
    Um grande beijo.
    Carlão.

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  9. Fala, Tio Carlão!

    O meu olhar para a música passa pelo olhar que, muitas vezes, você mesmo me ensinou a ter, ao longo dos muitos anos em que o ouvi cantando coisas boas (e sempre ao lado dos amigos, o que também é outra lição importante).

    E as texturas que tento imprimir nas minhas músicas vêm sempre na esperança de que alguém, "do outro lado da linha", entenda o que eu quis dizer.

    Que bom que você entendeu. Como sempre.

    Volte mais vezes por aqui e divirta-se. De preferência entre um copo e outro de cerveja. Assim a distância diminui, por mais que às vezes a saudade aumente.

    grande beijo!

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